Resumo:
Considerando os impactos das novas tecnologias de reprodução humana assistida (RHA) no campo do Direito das Famílias Contemporâneo, o presente trabalho tem como objetivo geral analisar em que medida o acesso a elas pode consistir em um fator de valorização dos vínculos familiares biológicos em detrimento dos vínculos socioafetivos, analisando as práticas discursivas e os argumentos presentes no debate em torno do anonimato ou conhecimento do doador de gametas. O tema despertou especial atenção por, à primeira vista, verificar-se uma biologização na substituição do paradigma do anonimato para o paradigma do conhecimento do doador, ao passo que se percebe no Direito uma prevalência para as relações afetivas. Foram analisadas as normativas ético-médicas do Conselho Federal de Medicina, representadas especialmente pela Resolução nº 2013, que prevê o anonimato, e projetos de lei do Congresso Nacional do Brasil, Projeto de Lei do Senado nº 1.184, de 2003, e seus apensos, tendo como pano de fundo discutir as transformações e diversas concepções de família e parentesco, que passa de um modelo patriarcal fechado e de prole consanguínea, para modelos plurais fundados em laços afetivos. Empregou-se como referencial teórico de base a análise de discurso, abordagem qualitativa e dialética, sobre documentação direta e indireta, analisando-se o texto legal, debates, votos e pareceres existentes, com sistematização das conclusões. Conclui-se que o debate político brasileiro, embora esteja inserido nas formações discursivas correlatas da questão (ciência, religião, filosofia e juridicidade), possui fragilidade argumentativa-epistemológica e é permeado por subjetivismos, interesses pessoais e político-partidários, além de sofrer forte influência midiática, não adentrando de forma mais objetiva e fundamentada nas diversas implicações de um ou outro paradigma. A opção pelo conhecimento do doador parece possuir caráter biologizante do indivíduo, mas não da relação entre os indivíduos. Se é verdade que, na contemporaneidade, como afirma Marilyn Strathern, o corpo mantém a pessoa enquanto partícula tão indivisa que torna os relacionamentos algo abstratos e fora dela, isso se coaduna com disposições internacionais de que o gene constitui o homem biologicamente, mas não é tudo o que ele é. Dito de outra maneira, o moderno conhecimento do corpo humano e a evolução da ciência vista na exacerbação das técnicas de RHA, aprofundaram uma noção de desvinculação do corpo do espírito e, com isso, da autonomia das relações entre as pessoas, levando-se à percepção de que o doador de gametas representa nada mais que um doador de material biológico e ‘ascendente estritamente biológico’ porque a noção de parentesco é relacional, feita com conexões cultural e individualmente significadas, de forma que o desvelamento genético do homem oferece uma escolha: as pessoas podem estabelecer conexões ativas por conta da genética ou podem, justamente, se desconectar, apesar dela. No Brasil, embora não se aprofundem essas discussões de forma mais sofisticada, percebe-se essa separação, aliada ao caráter biologizante do indivíduo, com desvinculação das relações formadas entre estes.