Resumo:
Este estudo teve como objetivo compreender o fenômeno da fome a partir do ponto de vista de atores sociais que a vivenciam no seu cotidiano. Partimos do pressuposto de que a fome, concebida por Josué de Castro, ainda é um dos grandes dilemas sociais do Brasil e uma condição de iniquidade num contexto de privação das capacidades humanas, conforme sugerem John Rawls e Amartya Sen. A alimentação além de ser um direito humano é também um ato cotidiano permeado pela cultura, onde no urbano sofre influência de uma série de fatores. Foi realizado um estudo sócio antropológico de fevereiro a maio de 2016 com famílias que vivem o cotidiano da fome na comunidade Alto da Boa Vista localizada no bairro Nova Santa Marta no município de Santa Maria, RS. Foram utilizadas entrevistas guiadas por um roteiro e anotações em diário de campo, sendo o processo analítico conduzido pela técnica de Análise de Conteúdo proposta por Laurence Bardin. Os principais achados mostram que a fome vivida e sentida corrói aos poucos o corpo e a alma dos sujeitos, é fruto de uma expressão corporal da necessidade fisiológica quantitativa de alimentos que provoca a sensação de vazio e de dor física, gera sentimento de incapacidade, provoca tristeza e grande preocupação com a incerteza do amanhã. Outro resultado é o habitus da escassez devido a precariedade da alimentação, o número restrito de refeições e a ausência do desjejum pela falta do pão. As famílias desenvolvem ajustes alimentares para conviver com a fome tal como praticar o café-almoço ou almoço-café, tomar água ou chimarrão quando estão com fome, comer pouco para sobrar para a próxima refeição ou para as crianças. Em relação às estratégias de acesso a mais identificada foi a solidariedade a partir do estabelecimento de uma rede de apoio e de ajuda alimentar de amigos, vizinhos e familiares. É necessário aumentar nossa capacidade de análise em relação ao problema da fome, bem como, quanto às políticas públicas de alimentação e nutrição e de segurança alimentar e nutricional que possuem alcance limitado para as famílias que realmente precisam com um discurso que privilegia as políticas neoliberais em detrimento do acesso equitativo aos alimentos, o qual continua sendo um grande desafio ético, político e econômico a ser enfrentado.