Resumo:
Esse estudo tem como proposta investigar experiências de cativeiro, parentesco, emancipação e liberdade vivenciadas por trabalhadores escravos (ou que se aproximavam a essa condição), nas últimas décadas da escravidão (c.1860 ? c.1888). Nesse empreendimento lançamos mão principalmente do cruzamento quantitativo e nominativo de fontes diversas. Como local de observação o município de Rio Pardo, situado na região central da então Província de São Pedro do Rio Grande do Sul e interligado fluvialmente à capital Porto Alegre, com a qual estabelecia relações comerciais. Sua economia baseava-se também na pecuária e na agricultura voltadas ao abastecimento interno. Como na maioria dos municípios sul-rio-grandenses, registrava o predomínio de pequenos proprietários de escravos, cuja força de trabalho estava disseminada por praticamente todas as atividades e espaços produtivos. O equilíbrio entre os sexos e a presença de trabalhadores jovens nas posses ao longo das quase três décadas de nosso levantamento junto aos inventários post-mortem nos fizeram problematizar a importância da reprodução endógena na persistência do cativeiro até as vésperas da abolição, bem como as configurações familiares tecidas pelos escravos. Nesse aspecto, os projetos e as estratégias de libertação engendradas por famílias negras, incluindo aí tanto a formação do pecúlio como a constituição de laços espirituais, passando pela apropriação dos dispositivos legais (sobretudo da lei de 28 de setembro de 1871, conhecida posteriormente como Lei do Ventre Livre), figuravam no repertório de recursos disponíveis e acionados. Escravos aparentemente destituídos de laços familiares, do mesmo modo, se faziam presentes entre aqueles que buscavam a alforria que, para além de simbolizar a passagem do cativeiro para a liberdade, operava nesse contexto de reorganização das relações trabalhistas como um arranjo de trabalho. O ano de 1884, nesse sentido, é emblemático por marcar a estratégia emancipacionista provincial de libertar sob condição de serviços o maior número de escravos possível, sem romper o poder moral dos escravistas. A presença dos filhos livres de mulheres escravas entre os bens inventariados, assim como os pedidos de tutela vinculados ao uso do trabalho desses menores pelos (ex)senhores de suas mães, ainda nos fizeram problematizar os atributos presentes na liberdade desses sujeitos cujas experiências se aproximavam do cativeiro. A atual situação de descendentes de escravos igualmente será pontuada a partir das experiências de uma comunidade quilombola rio-pardense que habita terras doadas aos seus descendentes nos tempos da escravidão e que resistem desde então à expropriação do território negro. Por fim, resta dizer que os sensos de justiça e direito manifestados por esses sujeitos históricos em relação ao cativeiro, à alforria, à família e à liberdade serão sobremaneira explicitados.