Resumo:
Propõe-se uma pesquisa teórica e documental que parte inicialmente de temas centrais da “questão intersexo”: o processo de interpelação médica, que força a conformação corporal e social de um sujeito naturalmente não ajustado às noções clássicas de anatomia masculina ou feminina, e a patologização e invisibilidade social das identidades sexuais e de gênero abjetas. Nesse contexto, buscou-se investigar profundamente as bases paternalistas do discurso e prática biomédicos que corroboram para dar uma roupagem de emergência ou urgência médica, o que pode camuflar violações de direitos humanos. Assim, questiona-se de que modo é possível garantir democraticamente a autonomia e a autodeterminação da identidade de gênero das pessoas intersexo, pautando-se em um sistema jurídico capaz de superar tal controle excessivo da seara médica, com uma gramática que atenda aos interesses democráticos de minorias estigmatizadas. Para tanto, constrói-se uma noção bioética e filosófica de autonomia sensível aos Direitos Humanos e às peculiaridades da realidade latino-americana. Assume-se um potencial intrínseco do Direito para intervir corretivamente para suprir lacunas das demais esferas, a fim de garantir condições mínimas de exercício da identidade do sujeito quando a sua autonomia individual não estiver suficientemente protegida. Diante da pesquisa, observou-se que, em uma parte menor dos casos,
procedimentos médicos terapêuticos podem ser necessários para evitar a morte ou
lesões corporais graves, o que justificaria a relativização da autonomia da vontade
frente à proteção da saúde. Contudo, em grande parte das situações, são aparentes
prioridades estéticas e funcionais (em especial reprodutivas) que servem a
interesses alheios presos numa matriz heterossexual, não necessariamente é
compatível com a autoidentidade sexual e de gênero do “paciente”. Logo, contata-se
o déficit de reconhecimento da autonomia do sujeito intersexo na tomada de decisões em geral, o que vai de encontro a normativas internacionais e estrangeiras, bem como direitos previstos no próprio ordenamento brasileiro ou em tratados ratificados pelo país. Com uma nova roupagem transdisciplinar crítica, é possível alcançar a efetivação dos direitos dos intersexos, a exemplo do processo de ratificação do registro de nome e sexo civil, a autonomia sobre o próprio corpo, integridade física, autodeterminação da identidade de gênero, proteção contra a discriminação e o consentimento livre e informado para tratamentos médicos. Constatou-se que o Judiciário, quando pautado em uma ampla e protetiva base democrática, permite um espaço que garanta a oitiva dos afetados, tendo em vista a possibilidade de privatização do poder e o descaso com interesses de agentes fora dos processos decisórios, que ainda são predominantemente definidos dentro de uma seara médica presa a um paternalismo forte e num objetivismo científico centrado na doença. Ainda que suscetível ao arbítrio de um julgador não eleito, o caráter contramajoritário possibilitado pela judicialização, com a ajuda dos movimentos sociais, tem o potencial de garantir mais espaço para a participação de minorias sexuais e de gênero em situações que envolvem seus próprios direitos e em que, muitas vezes, o Legislativo torna-se insuficiente, considerando as limitações do sistema majoritarista.