Resumo:
O objetivo deste trabalho é investigar as diferentes conceptualizações de feto anencéfalo a partir de um estudo de caso do processo da Arguição de Preceito Fundamental 54-8 (ADPF 54), cuja decisão final autorizou a interrupção de gravidez de fetos anencefálicos. Como aporte teórico, propõe-se uma articulação entre a Semântica de Frames, na perspectiva dos frames de compreensão (ZIEM, 2014), e o conceito de perfilamento (LANGACKER, 1987; 2008). Além disso, busca-se discutir a relação entre a interrupção de gestação de anencéfalo e os modelos culturais ligados ao aborto (COULSON, 1997; 2001; D’ANDRADE, 1987). O conceito de frame semântico é o cerne da teoria da Semântica de Frames, postulada por Fillmore (1982; 1985), a qual defende que os falantes entendem o significado de uma palavra ou expressão a partir de sua associação a uma cena esquemática mental. A partir dos trabalhos do linguista, Ziem (2014) retoma o conceito fillmoriano de frame de compreensão, o qual implica um espaço de compreensão ativado por determinado uso linguístico, que abrange conhecimento enciclopédico. Dentre os constituintes dessa estrutura esquemática conceptual, estão os slots e fillers, que podem ser identificados a partir de análises baseadas em corpora. Já a noção de perfilamento pressupõe que a evocação de um frame também envolve perspectivas diferentes sobre o mesmo evento ou entidade, o que faz com que falantes perfilem ou contrastem determinada situação contra frames ou facetas de conhecimento diferentes, dependendo de seus propósitos (CROFT; CRUSE, 2004; KÖVECSES, 2006; ZIEM, 2014). Como corpus de estudo, foram utilizados acórdão da ADPF 54, bem como as notas taquigráficas que registram os depoimentos das quatro audiências públicas realizadas. O corpus foi dividido em três subcorpora: (i) as notas taquigráficas da primeira audiência pública, na qual predominam os posicionamentos de representantes de instituições religiosas (Corpus NT1); (ii) as notas taquigráficas das três audiências públicas seguintes, em que predominam os posicionamentos de representantes de entidades médicas (Corpus NT2); e (iii) o acórdão de inteiro teor, em que consta a votação dos ministros e o proferimento da decisão final (Corpus Acórdão). O primeiro passo da análise consistiu na descrição do frame feto anencéfalo a partir das facetas de conhecimento presentes em cada subcorpus, seguindo a metodologia de identificação de slots proposta por Ziem (2014). Em seguida, verificou-se como essas facetas resultavam em perfilamentos diferentes. Os resultados mostraram que, no Corpus NT1, feto anencéfalo é mais frequentemente perfilado contra slots como [presença de atividade neurológica], [características fisiológicas e sociais], [vida] e [utilidade para transplante de órgãos]. No processo como um todo, predominam as conceptualizações emergentes dos corpora NT2 e Acórdão, em que feto anencéfalo é conceptualizado por meio de perfilamentos contra slots como [anomalia], [morte], [ausência de atividade neurológica], [inutilidade para transplante de órgãos] e [risco para a gestante], o que resulta no perfilamento contra o slot [desamparo jurídico], negando ao feto anencéfalo a proteção jurídica dada a outros fetos, no cenário brasileiro, por meio da Constituição. Além disso, essas facetas de conhecimento indicam uma ligação direta entre o modelo cultural de Punição e a situação de gravidez de feto anencefálico.