Resumen:
Embora, ao longo da História, não tenha sido rara a luta contra determinadas leis
ou atos governamentais, alegando violações à justiça, a expressão desobediência civil só
ganha o mundo após a publicação póstuma, no século XIX, de palestra de Henry David
Thoreau, que originalmente nem levava esse nome, narrando a sua curta estada na prisão por recusa a recolher um determinado tributo ao Estado, em decorrência de dois fatores principais: a tolerância do governo dos Estados Unidos com práticas escravagistas e a promoção, por parte do governo estadunidense, de guerra de conquista contra o México. Com a difusão da obra, movimentos contestatórios passaram a usar o termo para designar lutas que, conquanto fizessem uso de ilegalidade, empregavam métodos não violentos e esgrimiam razões de ordem moral para a oposição à ordem. No século XX, dois destacados líderes, Gandhi e King Jr, propugnaram extensas campanhas de desobediência civil em prol da independência da Índia e pela conquista de direitos civis pelos afroamericanos, respectivamente. Além da liderança política dos movimentos, Gandhi e King Jr. teorizaram sobre a desobediência civil, traçando critérios rígidos para a ação desobediente e exigindo forte disciplina moral de seus adeptos, em ascese muito próxima a obrigações religiosas. Nas décadas de 60 a 80 do século passado, com o crescimento substantivo de ações intituladas como de desobediência civil, os teóricos liberais estudaram os fenômenos de contestação e estabeleceram parâmetros para a sua
configuração, já escoimados de aspectos espirituais trazidos por Gandhi e King Jr.,
ajudando enormemente a consolidação, junto à opinião pública, da ideia de que a
desobediência civil não se confunde com o desrespeito à legislação realizada
egoisticamente por criminosos ordinários, nem se presta a revoluções violentas, devendo
haver certa tolerância com a prática que, inclusive, poderia ajudar na estabilidade das
instituições. O conceito liberal de desobediência civil não sofreu grandes contestações até o advento de novos movimentos de enfrentamento à ordem nestas duas primeiras décadas do século XXI. Contudo, com os novos movimentos, avolumaram-se as críticas à definição liberal, a ponto de alguns teóricos entenderem-na pouco útil para o exame da
contestação contemporânea. Este trabalho faz uma radiografia das teses liberais sobre a
desobediência civil, por intermédio de dois de seus mais notórios formuladores, Ronald
Dworkin e John Rawls; analisa os recentes fenômenos de enfrentamento à ordem e os
filósofos críticos à teoria liberal de desobediência civil, como Robin Celikates e Candice
Delmas e, por fim, advoga que, embora com algumas limitações, o arcabouço liberal da
desobediência civil ainda é útil para iluminar o rico cenário contestatório deste início de
século.